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GABINETE DO REPRESENTANTE DA REPÚBLICA

PARA A REGIÃO AUTÓNOMA DOS AÇORES

SOLAR DA MADRE DE DEUS

ANGRA DO HEROÍSMO





O CORTE E O RESTABELECIMENTO DAS RELAÇÕES DIPLOMÁTICAS LUSO-CHINESAS (1949-1979)

 

Lisboa, 11 de abril de 2019

 


Queria, em primeiro lugar, agradecer à Sociedade de Geografia o amável convite para vos falar das relações diplomáticas entre Portugal e a China – sua rutura em 1949 e restabelecimento em 1979.

Comemoramos agora os 40 anos desse restabelecimento.

Quando teve lugar o 20º. aniversário, em 1999, tive o prazer de organizar na Embaixada em Pequim, onde estava na altura colocado, um almoço comemorativo com a participação do Primeiro Vice-Ministro dos Negócios Estrangeiros da China, Wang Ying Fan.

No 30º aniversário tive, por seu lado, a honra de participar na sessão comemorativa organizada pela Sociedade de Geografia, em março de 2009, com uma palestra intitulada: “Cinco anos e meio na Embaixada em Pequim”.

Tenho muito prazer em voltar aqui hoje.

Um especial agradecimento ao meu excelentíssimo colega e amigo, Embaixador Fernando Ramos Machado, pelas suas palavras amigas de introdução e por se ter lembrado de mim para vos vir dar o meu testemunho.

         Trabalhámos juntos no Ministério dos Negócios Estrangeiros quando éramos jovens diplomatas, e mais tarde, quando chefiei a parte portuguesa do Grupo de Ligação Conjunto sobre a questão de Macau e ele era o Conselheiro na Embaixada em Pequim e membro do Grupo de Ligação Conjunto. Tempos interessantes esses, logo a seguir aos acontecimentos de Tiananmen.

Mais tarde, quando eu era Embaixador em Pequim e ele em Seoul, visitámo-nos mutuamente e apraz-me recordar o esplêndido almoço que ele me ofereceu na sua residência com um antigo Ministro dos Negócios Estrangeiros coreano que tinha sido meu colega em Nova York e que depois fora conselheiro para a Segurança Nacional. Falámos naturalmente da China, mas também da Coreia do Norte, país onde eu estava igualmente acreditado. Conversa fascinante e instrutiva.

Permitam-me ainda que saliente o trabalho da Sociedade de Geografia, particularmente importante, para que não se apaguem da nossa memória factos passados da nossa História, com relevância para o que somos hoje e para as relações que mantemos com outros países.

É pena que, apesar de termos sido pioneiros na chegada à China e ao Japão e do papel que tivemos nas interações culturais entre o Ocidente e o Oriente, nunca tenhamos criado e apoiado com meios adequados uma instituição dedicada ao estudo e promoção dessas interações, como outros países o fizeram, com menos pergaminhos do que os nossos, designadamente a França, com a École Française de l’Extrême Orient ou a Inglaterra, com a School of Oriental and African Studies (SOAS). Ainda estamos a tempo de o fazer.

Criámos a primeira Universidade e o primeiro jornal, ocidentais, no Extremo Oriente, contribuímos, através de relatos dos nossos missionários, para o conhecimento da China no Ocidente quando esse conhecimento  praticamente não existia, mas nunca nos empenhámos em desenvolver em Portugal estudos sobre as culturas dessa parte do mundo, preparando as nossas elites para que pudessem tornar-se especialistas e apoiar a nossa presença e ação na Ásia.

O caso do Ministério dos Negócios Estrangeiros é talvez o mais gritante. Nunca nos preocupámos em formar os nossos diplomatas, encorajando-os a aprender a língua chinesa ou japonesa e a aprofundar a sua compreensão pela realidade histórica, cultural e social de países tão importantes e com os quais encetámos relações ímpares, como nenhum outro país do Ocidente.

São lacunas que devíamos reparar, sobretudo se quisermos, como estou certo de que é o caso, fortalecer as nossas relações futuras com os países da Ásia e sobretudo com a China e o Japão e tirarmos partido dos fatores históricos que ainda nos podem dar vantagens competitivas, se bem potenciados.

A minha intervenção, não sendo eu um académico nem historiador, vai ser sobretudo fruto da minha experiência profissional, que me pôs em contacto com Macau, Hong Kong e a China e me permitiu acompanhar de forma continuada os desenvolvimentos relativos à região durante as últimas três décadas do século passado.

As nossas relações com a China foram sempre dominadas, naturalmente - ainda hoje o são - pelo nosso estabelecimento em Macau desde meados do Século XVI.

Daí que seja necessário enquadrá-las nos desenvolvimentos históricos relativos a Macau e percebermos como as devemos perspetivar.

Para o fazermos devemos ter em conta que é sempre delicado evocar a história, perante um país como a China.

A China é um país tradicionalmente virado para si próprio. Desde tempos imemoriais que se assumiu como centro do mundo, desvalorizando tudo o que se passasse para além das suas fronteiras, exceto o que pudesse afetar a sua segurança e tendendo a minimizar o impacto e a influência dos fatores externos, em relação aos quais manteve sempre uma enorme desconfiança.

A China foi sempre um país fechado, procurando o seu isolamento, cioso dos seus usos e costumes, da sua maneira de viver e assegurando-se da sua integridade e da sua segurança.

Quando foi forçada a abrir-se a partir de meados do Século XIX – 1841, com as guerras do ópio – todas as desgraças lhe caíram em cima.

A queda do império, a guerra civil, as lutas intestinas, a invasão por forças estrangeiras.

Foi um longo período, inglório, de subjugação, de sofrimento, de destruição, de servidão e de humilhações.

Este quadro negro só se alterou com a revolução comunista em 1949 e, sobretudo, depois com Deng Xiaoping e a sua política de reforma e abertura.

Segundo Deng Xiaoping, um país fechado e atrasado economicamente é um país fraco e vulnerável, à mercê e presa fácil de eventuais inimigos. Para ele, era preciso abrir o país, aceitar o investimento estrangeiro, aprender com os outros países, desenvolver as tecnologias, aumentar o comércio internacional.

Hoje a China, na senda de Deng Xiaoping, o grande responsável e impulsionador da modernização do país, tornou-se uma potência global, com relações com todos os países do mundo, com uma nova confiança, que olha para o seu passado imperial com orgulho, que volta a valorizar o confucionismo como fundamento da identidade chinesa.

Onde antes via só aspetos negativos, a China começa a ver na História motivos de inspiração e sinais da grandeza do país e a distinguir e a fazer a diferenciação do bom e do mau. É assim com a sua própria história, mas também com o relacionamento com outros povos e países. Sinal dessa nova atitude é a recuperação da Rota da Seda.

É bom que tenhamos uma correta perceção desta evolução, ao tentarmos compreender e apresentar o caso de Macau.

Falar das relações diplomáticas com a China é, como já salientei, falar de Macau que constitui, desde os primórdios, o elo entre os dois países e a razão de ser das suas relações.

Foi assim no princípio, assim se manteve durante mais de quatro séculos e assim é hoje.

É Macau que constitui o fator da nossa diferenciação e da especificidade do caso português, no contexto das relações dos países europeus com a China.

Felizmente - e devemos congratularmo-nos com isso - a história contemporânea veio criar as condições para que a China possa respeitar, por um lado, a autonomia e singularidade de Macau como região administrativa especial nos termos da Declaração Conjunta e o legado histórico de Portugal, e apoiar, por outro lado, o papel de Macau na estratégia do seu relacionamento externo, valorizando ao mesmo tempo, o fator histórico nas suas relações recíprocas com o nosso país.

A diplomacia teve um papel importante para criar essas condições e é justo que tal seja reconhecido.

Desde os primeiros tempos do estabelecimento de Macau que houve sempre uma teia de relações com as autoridades regionais e nacionais chinesas que podemos qualificar de relações diplomáticas e que acompanharam e apoiaram o exercício da administração e governo daquele Território.

Realizámos, nomeadamente, desde o século XVI, várias embaixadas a Pequim, com maior ou menor sucesso, e durante largos anos, os Governadores de Macau eram ao mesmo tempo os nossos Ministros junto do Governo Central da China, e os cônsules em Cantão eram funcionários destacados de Macau, respondendo perante os Governadores.

Só no limiar do Século XX tivemos uma legação diplomática sediada em Pequim, que foi encerrada em 1949 com o advento do comunismo.

Não vou fazer o historial detalhado do nosso relacionamento com a China, mas acho que é importante dar uma ideia do contexto que constituiu o pano de fundo das nossas relações diplomáticas.

Vou descrever esse contexto, baseado na minha observação e experiência pessoal.

Em 1972, tinha eu acabado a minha comissão no cumprimento do serviço militar obrigatório em Macau, onde estive dois anos, em que exerci também a profissão de advogado, quando regressei ao serviço diplomático e fui colocado na Divisão Política da África, Ásia e Oceânia. Um dos pelouros que me foi atribuído foi naturalmente o pelouro de Macau.

A República Popular da China, tinha assumido na Assembleia Geral das Nações Unidas, em outubro de 71, o lugar da China na Organização e no Conselho de Segurança como membro permanente.

Portugal tinha, curiosamente, votado a favor da moção processual prévia, considerando a questão da admissão da República Popular da China e expulsão de Taiwan como uma questão importante e, portanto, sujeita a uma maioria de dois terços. Essa moção foi derrotada (55 votos a favor, 59 contra) e o nosso voto foi resultado de um insistente pedido dos Estados Unidos da América, nosso importante aliado, que não desejávamos nem estávamos em posição de hostilizar.

Portugal, todavia, votou já favoravelmente a resolução admitindo a República Popular da China e expulsando Taiwan, resolução aprovada por 76 votos a favor, 35 contra, 17 abstenções, 3 países ausentes.

Aqui jogou o desejo de agradarmos a Pequim e correspondermos positivamente a uma diligência informal transmitida pelo Sr. Ho Yin, líder da comunidade chinesa em Macau, dizendo que o nosso voto favorável seria bem acolhido na capital chinesa.

Não tínhamos, por outro lado, razão especial para sermos agradáveis com Taiwan, cujos votos na Organização das Nações Unidas nos eram sistematicamente desfavoráveis.

No seguimento da sua admissão, a República Popular da China enviou uma carta em 8 de março de 1972, assinada pelo seu Representante Permanente, Huang Hua, e dirigida ao Presidente do Comité Especial de Descolonização, o tanzaniano Salim Salim, referindo-se às questões de Hong Kong e Macau. Dada a importância histórica desta declaração, quer para a definição do futuro de Macau, quer para o restabelecimento de relações diplomáticas, dou dela conta “ipsis verbis”.

E cito:

Como é do conhecimento de todos, as questões de Hong Kong e Macau pertencem à categoria de questões resultantes de tratados desiguais deixados pela história, tratados esses impostos pelos imperialistas à China.

Hong Kong e Macau são parte do território chinês, ocupados pelas autoridades britânicas e portuguesas.

A resolução das questões de Hong Kong e Macau está inteiramente dentro do direito soberano da China e não se enquadra na categoria de “territórios coloniais”.

Consequentemente, não deverão ser incluídos na categoria de “territórios coloniais incluídos na Declaração sobre a concessão da independência a países e povos coloniais.

Em relação às questões de Hong Kong e Macau, o Governo chinês tem consistentemente defendido que elas deverão ser resolvidas de uma forma adequada quando as condições estiverem maduras.

As Nações Unidas não têm o direito de discutirem estas questões. Pelas razões acima indicadas, a delegação chinesa opõe-se à inclusão de Hong Kong e Macau na lista dos territórios coloniais cobertos pela declaração e solicita que a referência errónea segundo a qual Hong Kong e Macau se incluem na categoria dos assim – designados “territórios coloniais” seja imediatamente retirada dos documentos do Comité Especial e de quaisquer outros documentos das Nações Unidas”. Fim de citação.

A Grã-Bretanha, perante as recomendações do relatório do Comité Especial de Descolonização aceitando as injunções chinesas e a sua aprovação pela Assembleia Geral das Nações Unidas, limitou-se a observar, numa carta do seu Representante Permanente, que não existiam razões para continuar a fornecer às Nações Unidas informação sobre Hong Kong e que a resolução aprovada não alterava o estatuto legal da colónia Britânica.

Quanto a Portugal, não tugimos nem mugimos. A nossa política era não levantarmos ondas e, no fundo, a exigência chinesa de retirar Macau da lista dos territórios coloniais, até coincidia com a política portuguesa da unidade pluricontinental da Nação portuguesa.

A declaração da China nas Nações Unidas não causou surpresa, nem se pode dizer que tenha sido inesperada.

A China não desejava nem a internacionalização das questões de Hong Kong e Macau, nem que se formassem quaisquer movimentos defendendo a autodeterminação dos dois territórios.

Por outro lado, sempre defendera que Hong Kong e Macau eram parte integrante da China e, na devida altura, sem pressas e de acordo com os interesses chineses, as questões seriam resolvidas.

Esta posição era agora declarada “urbi et orbi“, no fórum das Nações Unidas. Alto e de forma clara. Sem margem para qualquer discussão.

Alea jacta est. Os dados estavam lançados.

No que nos diz respeito, ouvimos bem e tirámos as devidas consequências.

Não foi o caso dos ingleses, que levaram algum tempo a aceitarem a posição da China, mas que, no final, acabaram por ter de o fazer.

Mas voltemos à minha modesta intervenção como jovem diplomata.

Regressado de Macau ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, fui solicitado pelo Gabinete do Ministro, que era então Rui Patrício a fazer uma informação de serviço sobre os títulos jurídicos da nossa soberania sobre Macau. Ele queria ter uma visão esclarecida sobre a matéria.

Fi-lo em forma de apontamento, datado de 6 de julho de 1973.

Nele fiz uma resenha da evolução histórica de Macau desde os primeiros contactos entre portugueses e chineses, do estabelecimento dos portugueses em Macau, das limitações e constrangimentos sempre impostos pelos chineses, do exercício “de facto” da soberania a partir de 1849 com o Governador Ferreira do Amaral, e da assinatura, finalmente, de um tratado em 1887 e ratificado em 1888, em que a China “confirma a perpétua ocupação e governo de Macau por Portugal”.

Por último, referi os desenvolvimentos mais recentes da forma como se exerceu a soberania portuguesa em Macau, antes da conclusão final.

Resumo os pontos principais:

1.     Sobre o estabelecimento dos portugueses em Macau os dados documentais são pouco precisos e por vezes contraditórios e não existe qualquer documento da época que ateste ou comprove como os portugueses se estabeleceram em Macau.

Resta o facto, esse indiscutível, de nos termos instalado em Macau desde a segunda metade do século XVI e de ali termos permanecido ininterruptamente, com o acordo, ou pelo menos, com a tolerância dos chineses.

Instalação essa que não se deveu ao emprego da força, a um ato de guerra, de conquista.

Como poderia ser?

2.     Sobre as condições da nossa soberania, desde cedo os chineses nos impuseram toda a espécie de limitações, constrangimentos e condicionamentos: pagamento de um foro, estabelecimento de uma alfândega chinesa, intervenção de um mandarim na administração, imposição de uma jurisdição chinesa, etc., etc.

Existiu quase sempre uma relação de conflito, latente ou aberto, em que se confrontaram por um lado a ação portuguesa no sentido de consolidar os seus poderes e por outro uma pressão por parte dos chineses no sentido de restringirem o espaço de ação da jurisdição portuguesa, nomeadamente para que tal não pudesse pôr em causa a soberania chinesa. Para os chineses, Macau era, e deveria permanecer, como um território aforado e emprestado.

Em várias ocasiões, esse confronto suscitou incidentes ou conflitos mais ou menos graves, mas dos quais, apesar da dependência total do território da benevolência e tolerância dos chineses, nunca resultou a expulsão dos portugueses.

Et pour cause.

A China sempre retirou importantes benefícios e proveitos da existência de Macau.

E apesar de todos os constrangimentos, Macau viveu períodos de total acalmia e pôde desempenhar o papel de entreposto privilegiado para o comércio internacional da China e de porta de entrada para o Império Celeste.

 

 

3.    Com as guerras do ópio e a subjugação dos chineses ao poder militar dos ingleses, a correlação de forças, senão com Portugal, mas certamente com os países estrangeiros, alterou-se.

Daí que a partir de 1849, com o Governador Ferreira do Amaral, a soberania portuguesa se tenha afirmado no plano dos factos, com o fim do foro e expulsão da alfândega chinesa.

Mas o certo é que os chineses continuaram sempre a contrariar a afirmação da nossa soberania.

Sempre se opuseram às nossas diversas tentativas para a celebração de um acordo que reconhecesse os nossos direitos.

Por serem ilustrativos da resistência dos chineses, aqui vos deixo alguns excertos da correspondência trocada com os nossos negociadores.

Encarregado de concluir em 1862 um tratado com a China, o Governador de Macau, Isidoro Guimarães, confessa o seu desalento e a inutilidade dos seus esforços para conseguir que o Governo chinês considere definitivamente Macau como território português.

E acrescenta:

“Tenho procurado em todos os arquivos documentos que possam servir-me para a difícil tarefa …, porém não acho um só título com que possa estribar as nossas pretensões e em contrário encontro-os aos montes”.

Por sua vez, o Governador Visconde de São Januário, em ofício de 25 de abril de 1872 para o Ministro dos Negócios Estrangeiros Andrade Corvo, escreve “o governo Chinês só à força consentirá, num tratado, a alienação, por mínima que seja, de uma parte do território do Celeste Império”.

Mas os chineses viriam finalmente a ceder, ainda que com relutância e reticências, em 1887, levados a isso pelo estado de necessidade em que se encontravam dada a fraqueza das suas finanças e por precisarem da cooperação lusa na cobrança de direitos sobre o comércio do ópio.

O tratado foi negociado da parte chinesa por um inglês, Sir Robert Hart, Inspetor Geral das Alfândegas chinesas e pelo seu adjunto James Campbell, que curiosamente chegou a alvitrar a ideia da venda do nosso território, logo, contudo, abandonada.

Conforme este “Tratado de Amizade e Comércio” de 1887, “a China confirma a perpétua ocupação e governo de Macau por Portugal”, obrigando-se Portugal a nunca alienar Macau sem acordo com a China. O tratado deixa a questão dos limites de Macau para futuras negociações, que nunca chegaram a resultados concretos.

Diga-se de passagem, que a parte portuguesa no Grupo de Ligação Conjunto levantou no meu tempo a questão da definição das águas territoriais. A parte chinesa opôs-se a que a matéria fosse tratada no Grupo de Ligação Conjunto, uma vez que recaía na esfera da soberania chinesa e seria tratada só após a reversão do território para a China.

Apesar dos termos do tratado de 1887, a China continuou a defender que o mesmo não consubstanciava o reconhecimento da soberania portuguesa sobre Macau. Para os chineses, Macau era há mais de mil anos parte integrante da China, fazia parte dos bens materiais da Nação chinesa, inalienáveis.

O tratado de 1887 acabaria, como vimos, por ser qualificado como um tratado desigual, no mesmo plano de outros tratados impostos à China pelos países imperialistas.

Perante este contexto e tendo em conta as condições de Macau, a conclusão a que chego no meu apontamento e que submeti ao Ministro, foi de que uma argumentação jurídica em defesa dos nossos direitos de soberania seria irrelevante e, portanto, inútil.

Esta minha conclusão está sintetizada na frase, que transcrevi no meu apontamento, inserta no jornal de Macau em língua chinesa Tai Chong, na sua edição de 18 de junho de 1971: “Sem dúvida Hong Kong e Macau são partes integrantes da China e a sua recuperação, mais cedo ou mais tarde, depende da política da nossa Pátria. Assim, qualquer profecia ou conjetura a esse respeito é supérflua e pouco prática”.

 

Uns escassos nove meses depois da data do meu apontamento deu-se a revolução do 25 de Abril e iria pôr-se à consideração dos nossos governantes, num novo contexto político, a questão de Macau e das nossas relações com a China, que tinham sido interrompidas em 1949.

Vejamos como chegámos a essa situação.

Nos últimos anos do século XIX, a degradação da situação interna na China agravou-se, mergulhando o país num período de contínua conflitualidade: derrota na guerra com o Japão, revolta dos boxers, intervenção das grandes potências e imposição de concessões e direitos de extraterritorialidade, o estertor da dinastia Ching e a implantação da República em 1912.

Entretanto deu-se em Portugal a proclamação da República em 1910.

A mudança de regimes em Portugal e na China, quase ao mesmo tempo, não veio alterar as posições dos dois países quanto a Macau.

Neste sentido, refira-se, teve lugar uma troca de comunicações oficiais quando, em 16 de outubro de 1913, Yuan Shi-Kai, que tinha assumido o poder em substituição de Sun Yatsen, foi eleito Presidente da República pela Assembleia Nacional Chinesa. O Ministro dos Negócios Estrangeiros Sun Pao-Shi envia, nesse mesmo dia, uma nota informando da eleição o Ministro português em Pequim, que lhe responde logo que a República Portuguesa reconhece a República da China.

No seguimento desta troca de Notas, Yuan Shi-Kai telegrafa ao Presidente Manuel de Arriaga agradecendo o apoio de Portugal ao novo regime e manifestando o desejo de que Portugal e a China mantivessem e estreitassem as suas relações de amizade.

Pouco depois, em 1916, morre Yuan Shi-Kai e, em 1925, morre Sun Yatsen.

A China continua durante toda a primeira metade do século XX num estado de insurreição permanente e de ausência de autoridade com sucessivas mudanças políticas.

Embora em 1928, Chiang Kai-shek consiga uma reunificação precária da China, a agitação política e social contínua, acompanhada de uma campanha para a abolição dos tratados desiguais e dos direitos extraterritoriais, bem como a guerra civil entre os nacionalistas e comunistas e a partir de 1931 e depois de 1937, a guerra e ocupação pelos japoneses.

Durante estes anos negros da história da China, Macau procurou manter a neutralidade não só em relação aos conflitos internos, mas também durante a ocupação da China pelo Japão, período particularmente difícil no nosso território.

Macau serviu, contudo, de refúgio e base de revolucionários e reformistas que ali foram desenvolvendo as suas atividades em diversos períodos do final do século XIX e princípios do século XX.

Durante os anos de turbulência na China, a vida em Macau prosseguiu em altos e baixos, com períodos de tensão e incidentes mais ou menos graves, e períodos de acalmia com contactos e comunicação normal, muitas vezes cordial, com as autoridades provinciais chinesas.

A questão dos limites territoriais e marítimos de Macau e as nossas pretensões em relação às ilhas da Lapa, Montanha e D. João, nunca satisfeitas, continuaram na ordem do dia, bem como a resistência chinesa a tudo o que pudesse ser entendido como extensão ou afirmação da nossa soberania.

Com o fim da ocupação japonesa da China, e o assomo de nacionalismo que se lhe seguiu, Macau viveu horas de incerteza com manifestações das populações, exigindo a restituição à China de Macau e Hong Kong e declarando o boicote ao nosso território.

O Ministro dos Negócios Estrangeiros chinês terá mesmo chegado a telegrafar ao Ministro da China, em Lisboa, com instruções para notificar o Governo português da intenção da China de recuperar Macau. (Não cheguei a confirmar esta informação, constante do livro “Macau 400 Years, de Fei Chengkang).

A mesma intenção foi declarada pelas autoridades de Guangdong que chegaram a enviar tropas para apoiar o bloqueio de Macau e a solicitar uma decisão ao Governo Central.

No entanto, a intervenção de Chiang Kai-shek fez cessar a campanha para a devolução de Macau à China, por entender que os problemas de Macau e Hong Kong deveriam ser resolvidos simultaneamente, como um todo e reconhecer que existiam dificuldades em reganhar Hong Kong.

É curioso notar o que se passou então com Hong Kong.

Roosevelt, embora não tenha assumido qualquer compromisso, tinha dado a entender a Chiang Kai-shek que ele não se oporia a que, após a derrota do Japão, houvesse uma negociação com vista à retrocessão de Hong Kong, em consonância com a política americana de pôr fim aos direitos extraterritoriais e concessões estrangeiras na China.

Chiang pretendia assim que os japoneses se rendessem em Hong Kong, considerada como parte da China, perante ele, na sua qualidade de Generalíssimo do Teatro da China.

Os Britânicos mostraram-se dispostos a que um representante de Chiang Kai-shek estivesse presente na cerimónia de rendição, mas não a aceitar a interpretação de Chiang Kai-shek segundo a qual Hong Kong fazia parte da China e que fosse a China a aceitar a rendição.

Attlee, que entretanto substituíra Churchill, despachou rapidamente uma força naval para Hong Kong para aceitar a rendição das forças japonesas e restaurar a administração britânica e telegrafou ao Presidente Truman para que este instruísse o General MacArthur, Comandante Supremo Aliado, para garantir que a rendição se fizesse ao Comandante da Força Naval britânica, Almirante Harcourt, à sua chegada à colónia.

Chiang Kai-shek reagiu, sugerindo como compromisso que os japoneses se rendessem perante um seu representante, que estaria autorizado, por sua vez, a autorizar as forças britânicas a recuperarem a “ilha de Hong Kong”.

Truman respondeu que a questão era sobretudo de carácter operacional e que o mais razoável era que a rendição se fizesse às autoridades da nação que exercia anteriormente a soberania na área, aquando da ocupação japonesa.

Chiang Kai-shek, teimosamente, respondeu que aceitava delegar a sua autoridade no Comandante britânico para este aceitar a rendição, devendo representantes da China e dos Estados Unidos da América participar na aceitação da rendição.

Mas os britânicos recusaram-se a aceitar esta sugestão: deveria ser o Comandante das Forças Britânicas a aceitar a rendição; quando muito, podiam representantes da China e Estados Unidos da América estar presentes e assinar, mas apenas como testemunhas.

Chiang Kai-shek insistiu, chegando mesmo a notificar o Embaixador britânico que delegava a sua autoridade no Comandante das Forças Navais britânicas e solicitou ao Presidente Truman que transmitisse a este último as necessárias instruções.

Ao mesmo tempo, informou Truman que não era intenção do seu governo enviar tropas chinesas para ocupar Hong Kong, não desejando alterar o status quo da colónia britânica.

Chiang queixou-se ainda da atitude dos ingleses que qualificou de imperialista, dominadora e imprópria de um membro das Nações Unidas, ao ameaçarem com o uso da força não só em Hong Kong e Kowloon, mas noutras partes da China.

Truman nada fez e a rendição dos japoneses acabou por ser feita ao Almirante inglês Harcourt, em seu nome próprio, o que não impediu os chineses de, nos seus registos, incluírem Hong Kong entre as rendições feitas à China.

Com o fim da ocupação japonesa em 1945, reacendeu-se de imediato a guerra civil que acabaria com a vitória dos comunistas em 1949 e a debandada dos nacionalistas para Taiwan.

Mais uma vez surgia uma situação de grande incerteza em relação ao futuro de Macau.

Daí que a questão do reconhecimento do novo regime e do estabelecimento de relações diplomáticas, tivesse sido objeto de cuidadosa ponderação por parte dos governantes portugueses.

Chou En-Lai, no próprio dia 1 de outubro de 1949, endereçou uma carta circular ao Ministro de Portugal na China, dando conhecimento da proclamação da República Popular da China e afirmando que o seu governo estava disposto a estabelecer relações diplomáticas com qualquer governo estrangeiro que respeitasse os princípios da igualdade, benefício mútuo e respeito mútuo pela integridade territorial e soberania.

Outra condição seria, evidentemente, não terem relações com Taipé.

Quer o Ministro de Portugal na China, Ferreira da Fonseca, quer o Cônsul em Cantão, Calvet de Magalhães, quer o Governador de Macau, Albano de Oliveira, defenderam a conveniência para Portugal, devido sobretudo à questão de Macau, em reconhecer a nova situação e estabelecer relações diplomáticas com Pequim.

Salazar, prudentemente, a conselho nomeadamente do Ministro dos Negócios Estrangeiros Caeiro da Mata, quis aconselhar-se com os ingleses e ver como os outros países ocidentais iriam proceder, nomeadamente os Estados Unidos da América.

Estes últimos eram naturalmente hostis ao novo regime, devido à sua ideologia e militantismo anti-imperialista e porque entendiam que a nova situação não era democrática, nem oferecia garantias de respeito pelos tratados e obrigações internacionais.

A Grã-Bretanha, com a preocupação de proteger os seus interesses comerciais em Hong Kong, decidiu por seu lado reconhecer o novo regime, que fora, entretanto, imediatamente reconhecido pela União Soviética e países comunistas.

Nesse sentido, comunicou ao Governo de Pequim o seu desejo de troca de embaixadores logo em 6 de janeiro de 1950.

O Governo chinês recusou, porém, o pedido, tendo apenas aceite que um funcionário do Foreign Office se deslocasse a Pequim e consentindo, após negociações, na abertura em 1954 de uma representação a nível de encarregado de negócios, o que a seu ver não constituía relações diplomáticas formais.

As relações, a nível de embaixadores, foram apenas estabelecidas em 1972.

Note-se que a atitude da Grã-Bretanha não impediu as manifestações em 1967 em Hong Kong e que a sua representação diplomática em Pequim tivesse sido na altura atacada e incendiada.

Entretanto, Portugal manteve uma atitude expectante, tendo sido dadas instruções ao Ministro Ferreira da Fonseca para responder à missiva de Chou En-Lai declarando que o Governo português tinha dado a mais cuidada atenção à comunicação recebida e que desejava manter e desenvolver no futuro relações amigáveis que desde sempre existiram entre os povos de Portugal e da China. Em tais circunstâncias, tínhamos a esperança que pudessem ser estabelecidas relações informais com as autoridades consulares portuguesas na pendência do estudo da situação descrita na comunicação recebida e proclamação anexa.

Tendo em conta a situação de Macau e a sua total dependência da China e as opiniões expressas atrás referidas, o Conselho de Ministros discutiu o assunto, tendo chegado a acordar, em princípio, proceder ao reconhecimento.

No entanto Salazar continuava a hesitar, tendo acabado por decidir não avançar com o reconhecimento.

Terão pesado uma variedade de razões.

Dos países ocidentais, tinham reconhecido o novo regime apenas a Grã-Bretanha, (com os resultados referidos), a Suíça e os países nórdicos.

Não o fizeram os Estados Unidos da América, nem o Canadá e a Austrália, nem a França (esta apenas o fez em 1964, no tempo de De Gaulle, e suscitando ásperas críticas dos americanos).

Por nosso lado, razões ideológicas devem ter pesado fortemente e porventura, também o receio de que a Embaixada da China fosse utilizada como um ninho de propaganda contra Portugal e a sua política colonial.

Por outro lado, não desejávamos que as nossas alianças, nomeadamente a recém-criada NATO (abril de 1949), fossem postas em causa, não podendo nesse caso sequer atuar como contrapeso de qualquer ação chinesa contra nós em Macau.

Finalmente a eclosão da guerra da Coreia e a intervenção chinesa fizeram certamente pesar a balança contra o nosso reconhecimento.

Neste contexto, a nossa embaixada, que estava sediada em Nanking, encerrou, não tendo sido transferida para a nova capital em Pequim.

Que eu saiba não houve qualquer nota diplomática, formalizando o corte ou a cessação das relações diplomáticas.

Aliás, com a proclamação da República Popular da China, cessaram pura e simplesmente as relações com os países que não reconheceram o Governo de Pequim, deixando as autoridades chinesas de reconhecer os diplomatas em posto e as suas funções oficiais.

Os representantes diplomáticos e consulares passaram a ser considerados meros residentes estrangeiros, desprovidos de quaisquer títulos oficiais.

O Ministro Ferreira da Fonseca já tinha, entretanto, partido para o novo posto e o Encarregado de Negócios Simões Affra, seguira para Macau.

Quanto a Xangai, que caíra sob o domínio comunista em maio de 1949, o nosso consulado terá igualmente sido encerrado e os arquivos e registos transferidos para o Consulado em Hong Kong, onde eu os fui encontrar quando fui transferido para este posto em abril de 1979. Foram, mais tarde, quando o posto foi encerrado em 2003, enviados para o Ministério dos Negócios Estrangeiros em Lisboa.

Quanto a Cantão, que só foi ocupado pelos comunistas 15 dias após a proclamação da República Popular da China, o Cônsul, que era o Dr. Calvet de Magalhães, foi mantido numa situação peculiar, como ele próprio refere no seu livro “Macau e a China no Após Guerra”, até setembro de 1950, sem qualquer estatuto nem possibilidade de praticar quaisquer diligências junto das autoridades chinesas nem de exercer o seu múnus profissional.

Não foi, contudo, objeto de maus tratos, para além das costumadas exigências e formalidades burocráticas.

Depois da partida do Dr. Calvet foi mantido em Cantão o Sr. Eugénio Miguel, que ali permaneceu até 1966, altura em que, na efervescência da revolução cultural, os guardas vermelhos atacaram o edifício do velho consulado, defenestrando o recheio e arquivos e expulsando o Sr. Miguel, que foi transferido então para o consulado em Hong Kong, onde o fui encontrar quando ali cheguei em 1979. Pouco depois de eu ter chegado o Sr. Miguel morreu de um ataque de coração.

Quanto à Embaixada da China em Lisboa, essa continuou até 1974, mas como representação diplomática de Taiwan.

Preocupados com as ambições de Taiwan e dos nacionalistas de recuperarem o poder e com a consolidação do seu próprio poder, e depois envolvidos na Guerra da Coreia, os comunistas não mostraram pressa em alterarem o status quo quer de Hong Kong quer de Macau, até porque eles representavam importantes fontes de informações, comércio e divisas, para além de serem pontos de passagem do contrabando de produtos sujeitos ao embargo americano.

Continuou tudo como dantes, com alguns incidentes e questões derivadas, sobretudo, das atividades dos nacionalistas refugiados em Macau.

De notar os incidentes da Porta do Cerco em 1952 e em 1955, o cancelamento das comemorações dos 400 anos do estabelecimento dos portugueses em Macau devido às objeções chinesas.

Os acontecimentos mais graves tiveram lugar no final de 1966, por ocasião da revolução cultural.

O embargo de uma escola comunista na ilha da Taipa, levou a tumultos e a uma prova de força que acabou na humilhação da Administração portuguesa, com o Governador a fazer o Kow Tow, a apresentar desculpas, a assumir responsabilidades e a pagar pesadas indemnizações às vítimas chinesas.

Tudo resultou do ardor e fúria dos guardas vermelhos e da imprevisão e insensibilidade de uma administração portuguesa ineficiente e desajeitada.

A China aproveitou para deixar bem claro que a soberania do território era chinesa, para neutralizar as organizações afetas a Taiwan, conseguir uma “capitis diminutio” da Administração portuguesa e reforçar o controle da comunidade chinesa e do próprio território.

Mas conseguidos esses objetivos, a China, mais uma vez, mostrou que não estava interessada em alterar o “status quo” e correr com os portugueses e que para ela, a altura da restituição de Macau ainda não tinha chegado.

Nas judiciosas e perspicazes palavras do Dr. Calvet de Magalhães, e cito: “nunca houve intenção do Governo de Pequim de ocupar militarmente Macau, o que seria fácil. Macau não foi na altura salva por ninguém do nosso lado. Se alguém salvou Macau foi a própria China. Enquanto esta não decidisse recuperar Hong Kong que lhe foi arrancada pela força nunca iria perder a face apoderando-se da presa fácil de Macau”. Fim de citação.

Em apoio desta posição, permito-me referir a conversa tida em fevereiro de 1972 entre Chou En-Lai, Nixon e Kissinger, cujos registos foram abertos ao público em 1999.

A certa altura Chou En-Lai refere a questão das colónias portuguesas em África para perguntar a Nixon porque é que os Estados Unidos da América não persuadiam Portugal a deixar Angola e Moçambique, demasiado grandes para um país tão pequeno como Portugal.

Nixon respondeu que a sua influência era mínima dada a inflexibilidade de Portugal. Para o nosso país, Angola e Moçambique faziam tecnicamente parte de Portugal e não eram tratados como colónias. Portugal, por outro lado, era aliado dos americanos e uma atitude de contenção da parte dos Estados Unidos da América, dava a este país uma melhor possibilidade de influenciar o governo português.

Chou En-Lai, a certa altura, diz e cito: “Portugal tem mesmo uma minúscula parte do território da China, “a very small place called Macau” a que chama parte de Portugal e que foi adquirido há 400 anos. Muitos dos nossos camaradas dizem que com um simples piparote podíamos recuperar o território, mas temos mantido uma atitude contida e desejamos esperar ainda algum tempo”. Fim de citação.

Após os acontecimentos de 66/67, tudo voltou à tradicional placidez do território. Macau caiu de novo num torpor lânguido e debilitado.

Em 1974, com a revolução do 25 de Abril, o contexto político alterou-se radicalmente da nossa parte e desde cedo nos mostrámos desejosos de estabelecer relações diplomáticas com a China e dispostos a romper com Taiwan e a resolver a questão de Macau.

Isto mesmo foi desde cedo objeto de uma nota oficiosa emanada do Ministério dos Negócios Estrangeiros, em 6 de janeiro de 1975, na qual o Governo Português declara “considerar do maior interesse estabelecer relações normais com a República Popular da China”.

No parágrafo seguinte, acrescenta: “Portugal considera que a Formosa (Taiwan) é parte integrante da República da China”.

Lapso incrível dos serviços do Ministério dos Negócios Estrangeiros uma vez que “República da China” era a designação da China antes da vitória comunista e que foi herdada por Taiwan. O país, com a vitória dos comunistas, passara a designar-se “República Popular da China”.

Sinal de alguma confusão que reinava então no Ministério. Não foi, como veremos, a última vez que lapsos deste tipo se verificaram.

No mesmo dia em que foi emitida a Nota, o Encarregado de Negócios de Taiwan, Sr. Benjamin Tu, foi convocado ao Ministério dos Negócios Estrangeiros pelo Secretário-Geral, Embaixador Tomás Anderson, e foi informado do teor da Nota e da intenção de Portugal de reconhecer que Taiwan era parte integrante da República Popular da China.

Seguiu-se o encerramento da Missão de Taiwan e o termo das suas relações diplomáticas com Portugal, em 27 de março de 1975.

Dias depois, em 1 de abril de 1975, o New York Times publica uma notícia intitulada “Lisbon and Peking at odds on Macau”, dizendo que Portugal tinha tentado devolver Macau à China.

A notícia foi desmentida por Almeida Santos e Garcia Leandro, como não tendo o mínimo fundamento e nunca ninguém veio à liça indicar o canal ou a personalidade envolvida.

Foi obviamente aquilo a que agora chamamos uma “fake news”.

Mas não deixa de ser curioso notar como a notícia foi tomada pela China.

É o Sr. Wong Man Fong, antigo alto funcionário da Agência de Notícias Nova China, que nos conta no seu livro “China’s Resumption of Sovereignty over Hong Kong”, publicado em Hong Kong em 1997.

O Sr. Wong refere que trabalhava em 1974 no Departamento de Análise da Xinhua e que foi enviado para Macau, por três meses, em virtude dos rumores quanto à entrega do território por Portugal à China.

E diz que, se isso sucedesse, a China ver-se-ia obrigada a aceitar e nesse caso a questão de Hong Kong imediatamente seria levantada.

Nessa altura, contudo, a China estava ainda no meio da revolução cultural e os distúrbios de 1967 em Hong Kong estavam ainda frescos na memória das pessoas.

Haveria assim o perigo de se cair no caos.

O Sr. Wong continua dizendo que era preciso persuadir o Governo português a não suscitar a questão, mas que seria impróprio para o Governo chinês apresentar tal proposta.

Daí que o assunto tivesse sido comunicado informalmente junto do Presidente da Assembleia Legislativa de Macau, para que fizesse chegar ao Governo português o pensamento chinês.

O assunto ficou assim adormecido, tendo voltado a ser abordado apenas em 1979 aquando das negociações para o estabelecimento de relações diplomáticas entre os dois países.

Acho que este testemunho é ilustrativo do desejo da China de manter o status quo em Macau e tratar da questão conforme o seu planeamento, sem ser sujeito à pressão de fatores que não fossem os ditados pelos seus próprios interesses e no calendário por si estabelecido.

Entretanto, o Governo português desdobra-se em diligências e declarações públicas procurando, com alguma ânsia, uma aproximação com a China, expressando ao mesmo tempo a sua disposição de ir ao encontro dos desiderata chineses, quanto à resolução da questão de Macau.

Diligências em Nova Iorque através da nossa Missão nas Nações Unidas, mensagens do Presidente da República e do Primeiro-Ministro, convites para visitas oficiais, tudo foi feito para que o processo das relações diplomáticas viesse a arrancar e a avançar.

Ao mesmo tempo, a nossa Constituição, que entrou em vigor em abril de 1976, considera já Macau como um território sob administração portuguesa, já não fazendo parte do território nacional, nem constituindo um círculo eleitoral próprio para as eleições nacionais.

Mas a hora não tinha ainda chegado para a China, que mostrou sempre uma grande prudência, dando uma resposta delicada, mas evasiva, às nossas diligências.

A China concordou, contudo, como passo intermédio, na abertura em Lisboa, de um escritório da agência de notícias Nova China, que funcionou como uma representação oficiosa da República Popular da China enquanto não existiram relações diplomáticas.

Várias razões explicarão as reticências chinesas.

A China encontrava-se ainda em plena Revolução Cultural, aguardando-se uma clarificação política que só se deu em 1978, com o processo do “gang dos quatro” e a emergência de Deng Xiaoping.

O mesmo se passava em Portugal, na visão dos chineses. Aguardavam que o período do PREC evoluísse para uma situação estável, que a descolonização se fizesse de maneira a emergir uma situação clara, que a influência soviética, que suscitava a maior desconfiança dos chineses, nomeadamente em relação à descolonização, fosse reduzida ou neutralizada.

No fundo, aguardavam que Portugal se tornasse para eles um parceiro fiável, com quem fosse possível negociar com segurança e numa atmosfera de estabilidade, sem interferências indesejáveis.

Tal acabou por suceder em 1978, tendo sido escolhido o palco de Paris e as embaixadas dos dois países naquela capital para as negociações que então puderam avançar.

A questão de Macau, com a aceitação da soberania chinesa sobre aquele território e de que o mesmo deveria ser restituído à China, através de negociações, foi fulcral para o acordo alcançado, da mesma forma que a questão de Taiwan e da política de “Uma China”.

Mas, tudo isso já estava decidido, nessa altura.

Os chineses quiseram ainda uma garantia que o território de Macau não pudesse servir de base a atividades hostis à República Popular da China, por parte da União Soviética e de Taiwan.

No final do processo, ainda houve alguns soluços devido a um pedido de alterações, de última hora, pelo Primeiro-Ministro Mota Pinto, de caracter mais semântico que substancial, mas que se puderam facilmente ultrapassar, numa altura em que os chineses já estavam desejosos de avançar com a normalização das relações.

O acordo foi assinado em 8 de fevereiro de 1979, tendo sido acompanhado por uma Ata secreta que referia um terceiro país, a União Soviética, e a que, portanto, não convinha dar publicidade.

Seguiu-se a abertura das duas embaixadas em Pequim e Lisboa.

Em abril de 1979, foi despachado para Pequim com cartas de gabinete, o jovem diplomata João de Deus Ramos e, em 10 de setembro, chegava à capital chinesa o Embaixador António Ressano Garcia, que apresentaria credenciais no dia 19 do mesmo mês.

Estava assim completado o processo do restabelecimento de relações diplomáticas e aberto o caminho para a resolução da questão de Macau e o começo de um novo capítulo, no relacionamento entre os dois países.

Ao fim de mais de quatro séculos do estabelecimento de Portugal em Macau e de cerca de um século e meio da presença da Grã-Bretanha em Hong Kong, estavam criadas as condições para que o processo de restituição dos dois Territórios pudesse entrar numa fase final de concretização, que seria iniciada cerca de três anos depois, com as negociações sino-britânicas sobre Hong Kong. Tudo feito segundo o calendário e planeamento chinês.

Duas observações:

Alguns autores alegam que fomos longe de mais, abrindo mão de posições sem contrapartidas e desvalorizando a nossa força negocial.

Penso que não têm razão. Fomos sim realistas e aceitámos como premissas básicas as posições de princípio da China quanto a Macau.

Sabíamos que não eram negociáveis para os chineses e assumimos bem a consciência de que estávamos perante o curso inelutável da história.

Compreendemos que tudo aconselhava a uma boa colaboração com a China para que os interesses da comunidade portuguesa de Macau pudessem ser salvaguardados e garantidos os seus direitos e liberdades, para que os interesses de Portugal na área saíssem beneficiados, para que as nossas relações com a China pudessem ser reforçadas e para que pudesse ter lugar uma transferência de poderes em Macau condigna.

Para além das referidas premissas básicas, haveria muito a fazer e muito a negociar e só havia vantagem em que as negociações se processassem numa atmosfera de confiança mútua e de um bom entendimento.

Mas esta é já matéria que sai do âmbito desta conferência.

Deixo aqui, porém, o repto de que é altura de produzirmos um “livro branco” sobre o processo das negociações, seus antecedentes e condicionantes e período de transição, que fique a constituir uma base documental sólida para as gerações futuras e para uma correta compreensão dos factos.

Para terminar, vou-vos contar um “fait divers” passado comigo em Hong Kong, que mais parece uma anedota do que um facto real, como efetivamente é.

Enquanto eu era Cônsul Geral em Hong Kong foi nomeado um novo Vice-Cônsul, Sr. António José Pereira, infelizmente já falecido. O facto deve ter-se passado no ano de 1980.

Conforme o procedimento habitual, o MNE, quando é nomeado um agente consular, emite um pedido de “exequator”, num documento formal em papel especial e escrito numa caligrafia desenhada especialmente por um calígrafo, assinado pelo Presidente da República, Primeiro-Ministro e Ministro dos Negócios Estrangeiros e dirigido ao Chefe do Estado com jurisdição sobre o território em que o agente consular vai desempenhar as suas funções.

O Chefe do Estado a quem o pedido é dirigido emite o “exequator”, reconhecendo o agente consular e garantindo os direitos e privilégios das suas funções.

Quando o pedido de “exequator” do Senhor António José Pereira chegou ao consulado, verifiquei que ele estava dirigido, pasme-se, ao Presidente da República da China, ou seja, ao Presidente de Taiwan, que nós não reconhecíamos, com que tínhamos cessado as relações diplomáticas e que nada deveria ter a ver com a colónia britânica de Hong Kong.

Devolvi assim o documento recebido, num ofício confidencial para o Ministério dos Negócios Estrangeiros, chamando a atenção para o lapso, que me fez recordar o lapso que tinha acontecido com a Nota Oficiosa de 6 de janeiro de 1975.

Passados uns tempos, recebi um novo pedido de “exequator”, devidamente assinado pelo Presidente da República, Primeiro-Ministro e Ministro dos Negócios Estrangeiros e já dirigido a Sua Majestade a Rainha Isabel II.

 

Lisboa, 11 de abril de 2019

 

 

                                                         Pedro Catarino