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Representante da República para a Região Autónoma dos Açores

 

 

LANÇAMENTO DO LIVRO DE MIGUEL MONJARDINO

“POR ONDE IRÁ A HISTÓRIA”

 

Muito obrigado, Dr. Miguel Monjardino por me ter convidado para apresentar o seu recente livro “Por onde irá a História”.

 

É com muito gosto que o faço e apraz-me registar as excelentes críticas que teve do Dr. Francisco Balsemão que apresentou o livro em Lisboa e do Dr. José Miguel Júdice e do Dr. Marques Mendes nas suas crónicas habituais.

 

 

Pela minha parte, a visão de um diplomata, como eu fui, tem sobretudo um carácter prático. Ela tem em vista ajudar os decisores políticos a considerarem as opções de que dispõem, a tomarem as decisões adequadas e a precaverem-se dos seus possíveis efeitos a curto e a longo prazo.

 

Diferente é a posição do académico ou jornalista.

 

Isto não quer dizer que as contribuições dos historiadores e académicos e o trabalho dos jornalistas não sejam objeto de atenção e não sejam instrumentos preciosos para os diplomatas.

 

Um diplomata que não leia os jornais e que não procure os ensinamentos da história, terá necessariamente uma visão superficial da realidade e, daí, imperfeita.

 

Não cumpre a sua missão.

 

Por isso li com todo o interesse e, devo dizer, com muito proveito, o livro de Miguel Monjardino, que devia aliás ser leitura obrigatória dos nossos diplomatas, bem como dos estudantes de relações internacionais.

 

 

Umas breves palavras sobre o autor.

 

Conheci o Miguel Monjardino quando vim para os Açores em 2011.

 

Veio várias vezes ao meu gabinete para conversarmos e trocarmos pontos de vista, sobretudo sobre a China.

 

O Miguel Monjardino impressionou-me pela sua abertura, pelo seu interesse na discussão e debate de ideias e pela sua capacidade de escutar atentamente o seu interlocutor.

 

As suas observações nunca deixaram de ser feitas com a modéstia de quem respeita a posição dos outros, sem uma réstia de presunção ou arrogância.

 

Para além destes encontros, para mim tão agradáveis como instrutivos, nunca deixei de ler as habituais crónicas de Miguel Monjardino no Expresso e de seguir, sempre que tinha oportunidade, os seus comentários televisivos na SIC.

 

Nascido na Terceira, o Dr. Monjardino revela-se como um observador da realidade global, mostrando um profundo conhecimento da História Universal desde os tempos da Antiguidade Clássica à realidade contemporânea.  Procura, sobretudo, usar a sua bagagem cultural para perceber o mundo e as pessoas.

 

Oriundo de uma família de gente culta, com um elevado nível de educação e com consciência social e desempenho de funções profissionais e políticas de relevo, teve, decerto, acesso a boas bibliotecas (já que tem, como eu, o gosto pela leitura) e a uma convivência familiar estimulante.

 

Depois dos seus estudos primários e secundários em Angra, cursou Direito na Universidade de Lisboa, também a minha Alma Mater, tendo mais tarde frequentado as Universidades de Reading e Birmingham, no Reino Unido, e feito investigação na Universidade de Maryland nos EUA.

 

Atualmente, para além da sua atividade como jornalista e comentador, tem uma carreira académica, dando aulas na Universidade Católica Portuguesa de Geopolítica e Geoestratégia e tem uma tutoria para jovens no final do ensino secundário, em que aborda e debate temas da literatura clássica, mas também da atualidade e da vida corrente e os ensina a olhar para a vida, a sua própria e a dos outros.  

 

A política internacional é a sua paixão e a interação com os seus alunos um desafio estimulante que exige da sua parte uma permanente atualização e aprendizagem com as novas gerações, que, como diz no seu livro, “lhe iluminam os seus dias”.

 

A sua visão do mundo e o quadro mental em que desenvolve os seus   raciocínios são tudo menos paroquiais ou insulares.

 

Não há vislumbre de dogmatismo nas suas posições, nem os constrangimentos de ideologias ou partidarismos.

 

Não se desligando das suas raízes lusitanas e da influência das mesmas, nota-se, até pelas suas leituras, sobretudo de autores e órgãos de informação anglo-saxónicos, que se compraz a citar, de um culto pelo rigor, pelo valor demonstrativo da realidade factual e por uma afirmação corajosa das suas opiniões, sempre próprias e independentes.

 

O Dr. Miguel Monjardino é um observador que, do alto de um farol, numa pequena ilha, no meio do oceano, vai analisando a realidade com um recuo que lhe permite uma visão ao mesmo tempo abrangente e profunda, mas sempre perspicaz e uma reflexão que a tranquilidade circundante lhe proporciona.

 

O seu livro é reflexo de tudo isto.

 

Os açorianos têm imensa sorte em o terem na Ilha Terceira e eu também.

 

 

Deixem-me começar por dizer que a geopolítica, objeto do livro de Miguel Monjardino, é uma disciplina essencial para se compreenderem as relações de poder entre os estados e as decisões dos líderes políticos e perspetivar os fenómenos políticos, de que a geopolítica é, ao mesmo tempo, causa e consequência, mas não dá, na minha opinião, todas as respostas ao que vai acontecendo no mundo.

 

Quantas vezes os mais reputados especialistas em geopolítica se enganaram e o curso da História foi bem diferente daquilo que previram.

 

Na minha opinião é a História que se explica a si própria.

 

Os antecedentes e o contexto atual, ditas causas remotas e próximas como ensinava o Professor Matoso no compêndio de História Universal por que aprendi no liceu, e a que o Dr. Monjardino designa por causas profundas e superficiais, agora bem mais complexas do que eram no passado, e as circunstâncias do poder, ajudam-nos a explicar as decisões e as perceções e emoções que lhe estão na base, mas o fator decisivo é sempre a natureza humana com toda a sua imprevisibilidade.

 

Daí que seja tão importante a análise psicológica das interações entre os diversos fatores em jogo tendo em atenção as personalidades e os sentimentos dos intervenientes, quer a nível individual quer coletivo.

 

Isto mesmo nos é dito por Miguel Monjardino quando salienta a incerteza do futuro e fala da influência de fatores emocionais como o orgulho, a raiva, o amor e a esperança.

 

Eu acrescentaria a coragem, a bravura e o patriotismo.

 

Mas também a vingança, o ódio, a sede de poder, o narcisismo, a arrogância e o desprezo pelos outros.

 

Daí a razão do título do livro: “Por onde irá a História” e não “Para onde irá a História” como aliás nos explica Monjardino no final do livro. A política internacional, diz, é um fenómeno complexo e dinâmico. Não podemos antecipar como as diferentes variáveis interagirão ao longo do tempo.

 

 

Permitam-me que vos conte um episódio que vivi quando era Embaixador em Washington e que ilustra como o julgamento dos especialistas em geopolítica nem sempre dá certo com a realidade que acaba por emergir.

 

Participava eu num jantar no Lincoln Center, em Nova Iorque.

 

Estava numa mesa com vários colegas de outros países e na mesa ao lado estava o Dr. Kissinger.

 

Falávamos dele, da sua longa experiência, da sua enormíssima influência na História mundial e da sua brilhante e extraordinária capacidade analítica que se tem mantido apesar da sua idade avançada.

 

Observei que comungava das opiniões expressas, mas não podia deixar de referir que em situações relativas ao meu país, o Dr. Kissinger se tinha enganado mais do que uma vez.

 

Aquando da revolução de abril em 1974 em que julgou Portugal um caso perdido, que era melhor deixar cair.  Portugal iria inevitavelmente tornar-se numa Cuba da Europa e serviria de vacina para evitar que outros países seguissem o nosso exemplo.  Felizmente que assim não sucedeu.

 

Outro caso foi o de Angola, em que os EUA, convencidos de que a FNLA, baseada no então Zaire, iria assumir-se como movimento dominante no pós-independência, assistiu passivamente ao desenrolar dos acontecimentos que levaram o MPLA, a União Soviética e Cuba a prevalecerem.  Estava eu na altura na NATO e perante as preocupações expressas por vários países, nomeadamente pela Bélgica, ouvi o Dr. Kissinger assegurar-lhes que o caso de Angola não se repetiria.

 

Outro caso ainda foi o de Timor-Leste, em que numa visita à Indonésia do Presidente Gerald Ford e do Dr.  Kissinger, os EUA deram luz verde para a intervenção e ocupação da nossa antiga colónia, o que a História haveria de corrigir cerca de 25 anos mais tarde.

 

No fim de jantar levantámo-nos da mesa e, tendo-me cruzado com o Dr. Kissinger, cumprimentei-o delicadamente: “Remember me?” – disse-lhe – “I am the Portuguese Ambassador in Washington”, ao que ele retorquiu: “Ah, Portugal, my favorite country”.

 

Mais tarde e muito recentemente, já depois da invasão da Ucrânia, o Dr. Kissinger com quase 100 anos, emitiu a opinião de que a questão da Ucrânia e Crimeia devia ser resolvida com base na geopolítica, opinião que veio posteriormente a corrigir.

 

Permitam-me notar que tal como o Dr. Miguel Monjardino elege Tucídides e a guerra do Peloponeso como “case study” para as suas lições de geopolítica, Kissinger por seu lado elegeu como seu modelo Metternich e o Congresso de Viena, do qual emergiu a Santa Aliança e um equilíbrio europeu, “a balance of power”, garantido pela legitimidade das grandes potencias vencedoras.

 

Esse equilíbrio, tão do agrado do Dr. Kissinger, que considerava a paz como a ausência de guerra, deixa por resolver o problema de uma paz justa e duradoura, baseada no Direito Internacional e na Carta das Nações Unidas.

 

Noto que Miguel Monjardino faz no seu livro, com grande lucidez, a distinção entre as três vias usadas pelos Estados para tentarem ordenar a política internacional. A constitucional, através de instituições internacionais, a imperial imposta por uma ou mais potências através da persuasão, intimidação, coerção ou guerra e a via do equilíbrio do poder entre os Estados mais poderosos.

 

É certamente a primeira, aquela que melhor garante uma organização democrática das relações internacionais e que agora com a Guerra da Ucrânia, é posta em causa. Devemos e teremos que a ela regressar, mas, entretanto, teremos que a combinar com alguns elementos das outras duas vias.

 

 

O livro de Miguel Monjardino começa com uma introdução intitulada TURBULÊNCIA em que o autor faz um apanhado dos factos ocorridos na madrugada do dia 24 de fevereiro de 2022.

 

Nesse dia, como Miguel Monjardino salienta, o mundo mudou. Tal como Olaf Scholtz que afirmou que “uma nova era” se tinha iniciado.

 

É bom que foquemos a nossa atenção nos factos essenciais.

 

Para Putin, a europeização e democratização da Ucrânia eram intoleráveis.

 

É isso que ele teme. O avanço da liberdade e da democracia e a prosperidade da UE às suas portas. É isso que ameaça o seu regime de ditadura, os seus planos expansionistas e militaristas e a sua própria sobrevivência.

 

Segundo Putin, a Ucrânia, deveria ser russa, não pode ter um governo hostil à Rússia e aos seus interesses.

 

Os dirigentes ucranianos, qualificados de corruptos, militaristas e nazis, deveriam ser afastados.

 

O domínio marcial da Ucrânia era absolutamente necessário para os objetivos da Rússia e para que esta se pudesse afirmar como potência mundial. É a prevalência da geopolítica, como razão da guerra.

 

A Ucrânia não tinha o direito de existir como Estado Independente, com uma identidade cultural própria. Fazia parte da Rússia que tinha o dever sagrado de a libertar.

 

Como tudo isto soa à anexação dos Sudetas e da Checoslováquia em 1938, por Hitler e a política do “espaço vital”.

 

Biden, Olaf Scholz e a maioria dos governos ocidentais duvidaram, tal como Putin, que a Ucrânia tivesse capacidade para resistir à “blitz krieg” desencadeada pela Rússia. Qualquer ajuda seria irrelevante. Kiev iria cair no dia seguinte.

 

Eu próprio escrevi num artigo publicado poucos dias depois e passo a citar: “Um verdadeiro Tsunami, uma onda avassaladora, cinco divisões, 60 mil soldados aproximam-se de Kiev”.

 

“Outras ondas, se necessário, lhe seguirão, sem apelo nem agravo.

Será o fim da Ucrânia como país independente, democrático e livre e a sua sujeição ao jugo russo”.

 

E coloquei a pergunta: “Por quanto tempo? O futuro o dirá”.

 

Mas sucedeu o impensável.

 

Zelenski e a grande massa do povo ucraniano agigantaram-se, numa prova de grande coragem e patriotismo, não aceitaram a derrota e decidiram vender cara a sua pele.

 

A liberdade e a independência, a que tinham tomado o gosto, eram demasiado importantes para eles.

 

A operação militar especial transformou-se num malogro, numa operação desastrada e desastrosa, numa humilhação para a Rússia.

 

Em vésperas da invasão, o Ministro da Defesa da Federação Russa dizia ao seu homólogo britânico que as forças armadas russas concentradas junto da fronteira ucraniana não iriam atacar, serviam apenas para mostrar o poder russo, capaz de numa semana ocupar toda a Ucrânia. E acrescentou. “Somos invencíveis, nunca mais seremos humilhados”.

 

Passado um ano da agressão russa, com uma guerra que implacavelmente continua a não dar mostras de se aproximar do seu fim, não sabemos como vai terminar, mas temos consciência de que o mundo será outro e a ordem internacional, a nível europeu e global, será certamente muito diferente e que ela resultará da forma como terminar o conflito.

 

O que é certo é que, como salienta Miguel Monjardino, a invasão da Ucrânia foi o fim das nossas ilusões ao acreditar que depois do fim da Guerra Fria, em 1989 e do colapso da União Soviética, em 1991, o futuro das democracias liberais estava assegurado e que a guerra tinha deixado de ser possível no velho Continente.

 

Também se esfumou a ilusão por parte da Alemanha, de que podia transformar a Rússia de um urso feroz e esfomeado num gato bem alimentado e pacífico, na alegoria tão bem achada pelo Economist.

 

Como estávamos todos enganados!

 

 

Para uma avaliação dos factos, Miguel Monjardino salienta que é essencial uma visão abrangente e contextualizada dos acontecimentos políticos e económicos.

 

Propõe que essa visão seja o fruto de uma análise que deverá assentar num modelo estruturado, com base na complexidade da História.

 

Esse modelo reflete fatores tão diversos como a geografia, a cultura, o poder militar, a economia, o desenvolvimento da ciência e da tecnologia, a energia, o aquecimento global, o sistema financeiro internacional, a psicologia, a física e a matemática.

 

E acrescenta 4 regras para a análise dos factos.

 

O ponto de partida deverá ser sempre o passado histórico.  Mas o tempo, as perceções dos líderes e as suas emoções, serão sempre fatores decisivos.

 

No fundo é a natureza humana, com toda a sua imprevisibilidade que prevalecerá.

 

Uma das regras, diz Monjardino, é a dificuldade de avaliarmos o verdadeiro significado dos acontecimentos, no momento em que têm lugar.

 

Outra regra é a de que o que faz sentido para uns, pode não fazer sentido para outros.

 

Putin, ao tomar a decisão de invadir a Ucrânia, reflete por um lado os atavismos e idiossincrasias da mentalidade do povo russo e a perspetiva tradicional e instintiva com que as lideranças do Kremlin sempre têm olhado para as relações da Rússia com o Mundo exterior.

 

Mas a sua decisão é, por outro lado, fruto da sua personalidade, dos seus fantasmas e da sua visão neurótica do mundo e do poder, da sua obsessão com a geopolítica, das suas ambições pessoais para o restabelecimento do império soviético, sucessor do Czar, Pedro, o grande, modelo de Putin.

 

Putin olha para si como um Deus, governando o seu povo com mão de ferro. Para ele, o sacrifício de vidas humanas, a destruição e o sofrimento causado pela guerra não têm qualquer valor.

 

Não quer saber para nada do direito internacional e da Carta das Nações Unidas e não teme vir a ser punido pela violação dos direitos humanos e de crimes contra a Humanidade.

 

A natureza do seu caracter e a sua arrogância ficam bem reveladas numa conversa que teve pouco antes da invasão, com o então PM Britânico, Boris Johnson, na qual enganosamente negou a sua intenção de atacar a Ucrânia.

 

Putin diz-lhe a certa altura: “Não lhe quero fazer mal, mas, creia-me, se eu quisesse destruía Londres num minuto”.

 

Mas a decisão de Putin é também racional.

 

Mediu certamente o grau de controle que a sua liderança tinha internamente, as suas capacidades militares, incluindo a posse de armas nucleares e os meios de coação económica de que dispunha, em particular a dependência dos países europeus do gás russo, nomeadamente a Alemanha.

 

Putin avaliou também as fraquezas da Ucrânia e dos países europeus e a sua impreparação em termos militares, tendo levianamente deixado nas mãos dos EUA e da NATO a sua defesa, convencidos que os seus eleitorados recusariam as necessárias despesas com uma defesa mais efetiva.

 

Pensou também, na falta de unidade e coesão da UE, bem como na aversão das populações das sociedades ocidentais em aceitarem sacrifícios.

 

Pensou ainda na provável indisponibilidade dos EUA, depois do fracasso do Afeganistão e com as suas dificuldades internas, para vir em socorro dos ucranianos.

 

Enganou-se redondamente.

 

As suas previsões e objetivos falharam.

 

Deparou-se não com a libertação de um povo vitoriando as forças russas, mas com uma oposição firme e heroica de todo um povo unido na defesa da sua liberdade e pronto a sacrificar as suas vidas, na luta contra a odiosa agressão russa.

Não contou também com a reação da UE e da NATO e a sua determinação e unidade, reforçadas pela agressão e o apoio enérgico e decisivo dos EUA à Ucrânia.

 

Todos estes factos são, por Miguel Monjardino, escalpelizados, contextualizados, cruzados com realidades de hoje e de ontem, analisados sob ângulos diversificados e contraditórios.

 

 

À introdução seguem-se 133 crónicas escritas nos últimos 15 anos, de 2007 a 2022, arrumadas em 7 capítulos temáticos.

 

São crónicas curtas, em que Monjardino refere factos e episódios retirados muitas vezes das suas leituras, factos contemporâneos e factos de um passado, por vezes distante, como da antiguidade e demonstra de forma argumentativa a sua relevância e a sua interpenetração com a realidade que analisa, contribuindo para a compreensão da mesma.

 

Cada crónica é um convite à reflexão e a um eventual debate sobre a explicitação e desenvolvimento das ideias expostas e dos factos referidos.

 

Mais do que uma preocupação em informar, as crónicas constituem um convite ao leitor para que faça, ele próprio, um processo mental de análise do conteúdo, em paralelo com as apreciações do autor.

 

E assim vai discorrendo, lançando interrogações, abrindo pistas, sugerindo interconexões sobre os problemas da geopolítica e do sistema internacional, exercendo uma pedagogia altamente instrutiva e estimulante.

 

Poder-se-á dizer que as crónicas são como peças de um puzzle, que se vai arrumando, uma por uma, num quadro alargado que abarca na sua totalidade o sistema internacional que se pretende compreender.

 

 

Permitam-me que volte à análise da presente guerra, tentando fazer uma explanação da realidade, em paralelo com as análises que Miguel Monjardino elabora sobre as múltiplas facetas do conflito, na sua contextualização e interpretando as atitudes e intenções dos intervenientes.

 

As mudanças que se deram em 1989 e nos anos imediatamente subsequentes, com a queda do muro de Berlim, a reunificação da Alemanha, o colapso da União Soviética, o fim do Pacto de Varsóvia e a integração da maioria dos países do leste da Europa na UE e na NATO, vieram criar um quadro geopolítico europeu bem diferente do anterior.

 

Estas mudanças tiveram lugar no contexto de uma evolução pacífica.

 

Seguiram-se a um período de 40 anos de paz, paz que foi assegurada, temos de o reconhecer, pela NATO, aliança defensiva e pela proteção providenciada pela superioridade militar e económica dos EUA, indispensável para as democracias europeias. Ainda hoje continua a sê-lo.

 

Os países europeus, com a segurança garantida pelos EUA e a ajuda económica do Plano Marshall, puderam concentrar os seus esforços na construção de uma nova Europa e no seu desenvolvimento económico e social, que viria a ser o que é hoje a UE, projeto generoso, aberto e democrático de integração e partilha de soberania.

 

Foi desenvolvido um espaço de paz, prosperidade e justiça, em que temos a felicidade de viver, baseado nos valores humanistas da liberdade, do primado do direito e da democracia.

 

A ideia da integração veio substituir-se aos nacionalismos irredentistas que levaram à Guerra.

 

A proteção americana levou a que uma parte dos recursos que, noutras circunstâncias seriam dedicados à defesa, fossem dedicados à construção de uma Europa social.

 

Durante este período, designado por guerra fria, trabalhei como jovem diplomata na NATO, durante 12 anos, 6 anos e meio dos quais como funcionário internacional, responsável pela gestão de crises e respetivos procedimentos.

 

Todos os anos organizávamos exercícios, de papel, na base de situações fictícias, imaginadas mas plausíveis, para testar e melhorar os procedimentos.

 

Nunca foi disparado um tiro, nem houve qualquer operação militar envolvendo a União Soviética, nem sequer em situações que tal poderiam justificar, como a intervenção soviética na Hungria, em 1956 e na Checoslováquia, em 1968.

 

Em 1989, último ano em que estive na NATO e em que supervisionei a coordenação de um exercício, começámos a integrar nas comunicações palavras como “glasnost” e “perestroika”.

 

Pressentia-se a mudança.

 

Escassos meses depois, já depois da minha saída da NATO, a realidade sobrepunha-se à ficção.

 

Na génese dos acontecimentos então verificados esteve um homem providencial, Gorbatchev.

 

Às suas reticências quanto ao futuro da NATO e seu avanço para leste, foi-lhe respondido que tudo dependeria da vontade livremente expressa pelas populações. Seria uma liberdade de escolha que teria de ser respeitada, mas que, dado o carater defensivo da Aliança Atlântica, não poria em causa a segurança da União Soviética.

 

Outros fatores contribuíram para a mudança: o fracasso do comunismo, a perspetiva de bancarrota da União Soviética e a força da liberdade, tantos anos reprimida.

 

Esta mudança teve uma importância fundamental para a geopolítica europeia e mundial, dando lugar a uma situação que Miguel Monjardino designa por “o momento unipolar da América”.

 

Foi contudo, percecionada e digerida de forma diferente pelos países ocidentais e pela Rússia de Putin.

 

Os países ocidentais olharam para o fim da guerra fria numa perspetiva dos valores da liberdade e da democracia, como um avanço civilizacional.

 

Foi a força destes valores que prevaleceu ao fim de 40 anos e que verdadeiramente derrubou o muro de Berlim.

 

Os países ocidentais, sobretudo os europeus pensaram que na nova ordem internacional tudo se resolveria sem recurso à força, a diplomacia e o diálogo sob a égide das Nações Unidas tudo poderia reparar, o acesso à UE far-se-ia dentro da normalidade democrática, o espectro da guerra na Europa estava finalmente afastado. Para sempre…

 

Pensaram ainda que poderia haver um entendimento com a Rússia e que esta poderia vir a integrar-se numa Europa aberta e beneficiar da prosperidade que a UE estava a construir.

 

A perspetiva de Putin foi completamente diferente.

 

Rejeitou a perestroika, a glasnost e acusou Gorbatchev de trair a Rússia e conduzir a União Soviética ao colapso.

 

A sua visão, baseada numa lógica do poder, viu a dissolução da União Soviética, como o maior erro geoestratégico do século XX, como uma “aberração histórica”, como um atentado contra o destino histórico sagrado da Rússia, como uma conspiração dos EUA para enfraquecer a Rússia e dominar o Mundo como única potência mundial, como uma ameaça permanente de um cerco capitalista, antagónico e russofóbico.

 

Entre as duas opções, ou juntar-se à nova Europa, baseada na paz, na inovação, na educação, na prosperidade para todos ou reassumir o velho sonho de um império baseado na hegemonia e na agressão, escolheu e advogou a segunda opção, pondo-nos perante, a assim designada por Miguel Monjardino, “crise dos 30 anos”.

 

A uma Rússia benigna, construtiva, orgulhosa das suas contribuições para a Humanidade, através dos seus génios da literatura e da música, Putin preferiu uma Rússia expansionista, militarista, predadora.

 

Desencadeou uma agressão não provocada, brutal e sem senso, a um país independente, membro fundador das Nações Unidas, com fronteiras reconhecidas internacionalmente, que nunca constituiu a mínima ameaça à Rússia, que renunciou às armas nucleares que detinha e que a única coisa que desejava era que não lhe fosse negado o direito de escolher as suas instituições políticas e as suas alianças, cujo único objetivo era construir um pais melhor e assegurar a sua independência e segurança sem, repito, com isso ameaçar quem quer que fosse.

 

Com o fracasso da sua agressão, a racionalidade de Putin cedeu o passo a uma narrativa delirante.

 

A Rússia só está, diz Putin, a defender-se contra uma guerra por procuração que o Ocidente, dominado pelos EUA, lhe está a infligir, num ataque estratégico que visa a alteração do mapa da Europa e das fronteiras que definiam a antiga ordem internacional, bem como o enfraquecimento e a destruição da Rússia, através do seu desmembramento e que começou com uma manipulação da liderança ucraniana.

 

A operação militar especial da Ucrânia passou a ser, na sua mente alucinada, uma guerra da NATO, atentatória dos próprios fundamentos da Rússia, de uma importância existencial para a Rússia e para a sua sobrevivência, uma questão de vida ou de morte, como sublinha Miguel Monjardino.

 

Esta narrativa, absurda e ridícula, não tem qualquer base numa análise objetiva dos factos, uma vez que a Rússia nunca foi atacada. Nunca o Ocidente ou a Ucrânia lhe infligiram qualquer ataque ou ameaçaram de o fazer.

 

Não é a Rússia que está perante um perigo existencial, ela é uma realidade e não desaparecerá. O que está em perigo é o seu regime ditatorial, despótico e imperialista. É a própria sobrevivência de Putin, a ser decidida pelo seu próprio povo, quando lhe for reconhecida a liberdade.

 

O Ocidente na sua ajuda à Ucrânia, para que esta possa exercer o seu direito de legítima defesa, tem sido prudente, para evitar o alastramento do conflito. O Ocidente tem seguido aquilo a que podemos chamar uma contenção calculada, o que aliás tem acrescido as dificuldades da Ucrânia em contrabalançar a ofensiva russa.

 

E para aqueles que dizem que o Ocidente o que quer é impor, a ideologia da democracia liberal, que está longe de ser aceite pelo resto do mundo e que a Guerra na Ucrânia é o reflexo dessa antinomia, a resposta é que o cerne da questão reside não aí, mas na violação grosseira do Direito Internacional e da Carta das Nações Unidas que consubstanciam valores universais.

 

Quanto à aceitação da ideologia da democracia liberal, ela deverá ser sempre resultante de uma livre escolha das populações.

 

É essa livre escolha que Putin quer negar abusivamente à Ucrânia, como aliás nega ao seu próprio povo.

 

Por outro lado, nunca houve qualquer tentativa de impor uma ideologia à Rússia, devendo ser o povo russo a decidir sobre as suas próprias instituições políticas.

 

Tudo o que atrás disse não deve desviar-nos dos factos essenciais.

 

E os factos essenciais colocam a Rússia e Putin na posição de agressor e violador do Direito Internacional e a Ucrânia e Zelenski na posição de vítima, que exerce o seu direito de legítima defesa.

 

Não, Senhor Putin, a guerra da Ucrânia não lhe foi imposta por ninguém, nem pelo Ocidente, nem pela NATO, nem pela Ucrânia, nem sequer pelo povo Russo.

 

É uma guerra da sua escolha, é a sua guerra, do seu engenho e da sua responsabilidade.

 

 

Com o meu enfoque na Guerra da Ucrânia e na Rússia acabei por não referir a conclusão do livro de Miguel Monjardino que considero a parte mais interessante e estimulante do livro. Ficará para outra ocasião.

 

Monjardino põe em equação as tendências que se podem descortinar neste período de transição para uma nova ordem internacional e as implicações para as posições de países como a China, a India, os países emergentes e o nosso próprio país.

 

O capítulo intitula-se conclusão e não conclusões. Et pour cause. Previsões, só no fim do jogo.

 

Conforme a citação do Economist, referida por Monjardino, “estamos a passar pela tempestade perfeita da incerteza”.

 

O futuro é imprevisível.

 

Mas temos que lutar por ele e pelos nossos valores e pelo mundo em que queremos viver. 

 

Condescendência ou capitulação não são opções.

 

Nothing is taken for granted” diriam os ingleses. 

 

“Por onde vai o mundo” é um livro indispensável, que vale a pena ler e reler e em que vale a pena refletir e aprofundar.

 

Muito obrigado Dr. Miguel Monjardino.

 

Obrigado a todos pela vossa atenção.

 

Angra do Heroísmo, 14 de março de 2023

Pedro Catarino

 

LANÇAMENTO DO LIVRO DE MIGUEL MONJARDINO

“POR ONDE IRÁ A HISTÓRIA”

 

O texto que segue foi escrito para integrar a apresentação do livro “Por onde irá a História”, de Miguel Monjardino, mas não foi lido para não alargar a sessão.

 

A minha intervenção já vai longa, mas, com a vossa indulgência, gostava ainda de contrapor à perspetiva de Miguel Monjardino sobre a Rússia, a de um diplomata americano, especialista em assuntos soviéticos, que em fevereiro de 1946, enviou de Moscovo para a sua capital um telegrama que ficou célebre e que constituiu a base da política dos EUA em relação à União Soviética durante todo o período da guerra fria.

 

Estou a falar de George Kennan, que faleceu, não há muito tempo, em 2005, com 101 anos de idade.

 

Kennan, curiosamente, esteve colocado em Lisboa, como encarregado de negócios, em 1942-43 e teve um papel relevante no acordo para a utilização de facilidades nos Açores pelos aliados na 2.ª Guerra Mundial.

 

Em 1946, era encarregado de negócios em Moscovo, quando recebeu um pedido de parecer sobre as intenções da União Soviética, quanto à sua filiação no Banco Mundial e no Fundo Monetário Internacional.

 

Washington estava então preocupada com o crescente antagonismo de Estaline.

 

A resposta de Kennan que ficou conhecida como o “longo telegrama” é um documento de excecional clarividência e de grande atualidade.

 

Quer pela substância, quer pelo seu método de análise, aproxima-se das apreciações de Miguel Monjardino, com 76 anos de intervalo.

 

Kennan começa por observar que o parecer solicitado envolvia questões tão complexas (intricate foi a palavra que utilizou), tão delicadas e tão estranhas à nossa maneira de pensar e tão importantes para a análise da política internacional, que não podia, em sua opinião, condensar a resposta num breve telegrama, arriscando-se a apresentar uma visão demasiado simplista e, nessa medida, perigosa.

 

Escreve, ele próprio dita o telegrama à sua secretária, um texto com 5.363 palavras (10 páginas), o que contrariava as regras das comunicações telegráficas oficiais, que determinavam que elas não deviam ter mais do que uma página ou página e meia (hoje ainda é assim), para não afetar o sistema de codificação e transmissão e não sobrecarregar o pouco tempo dos decisores políticos.

 

Neste telegrama, Kennan, identificou a União Soviética como apresentando o mais sério desafio para a política externa americana. Manifestou a sua oposição à política de conciliação e apaziguamento com a URSS e advogou uma política paciente, firme e vigilante para contenção do expansionismo soviético.

 

Desde então para cá, o mundo mudou radicalmente.

 

Mas a maneira de ver o mundo e os pressupostos da política externa russa, pouco mudaram.

 

Kennan, no seu telegrama, analisa sucessivamente as características básicas da perspetiva soviética do mundo do pós-guerra, os seus antecedentes, a sua projeção na política ao nível oficial e não oficial e as deduções práticas do ponto de vista da política dos EUA.

 

Não vou aqui descrever em pormenor o conteúdo do telegrama.

 

Refiro apenas algumas das premissas do pensamento soviético, no tempo de Estaline, tal como percecionado por Kennan e que hoje vemos traduzidas no pensamento russo, no tempo de Putin.

 

A URSS vive em permanente ameaça de um cerco capitalista, antagónico, com o qual a longo prazo não pode haver, na sua perspetiva, uma permanente coexistência pacífica.

 

O mundo vive uma batalha entre o centro socialista, congregando os países que tendem para o socialismo e o centro capitalista, congregando os países que se inclinam para o capitalismo.

 

A vitória de um ou de outro no comando da economia mundial ditará o destino do mundo.

 

Para isso a URSS deverá tirar partido das diferenças e conflitos internos do mundo capitalista e por todos os meios enfraquecer o seu poder e a sua influência, quer individualmente quer coletivamente.

 

Ao mesmo tempo, tudo deverá ser feito para fazer avançar a causa socialista e a força e poder da URSS na cena internacional.

 

No plano interno, a URSS deverá manter o seu poder militar, a sua estrutura ideológica monolítica e a fidelidade do povo à sua liderança.

 

A hostilidade ao ocidente não corresponde aos sentimentos do povo russo, que tem uma atitude amigável para com o mundo exterior e que deseja, acima de tudo, viver em paz e gozar os frutos do seu labor.

 

Essa hostilidade representa a tese que é propagada com grande habilidade pela máquina de propaganda oficial, através do seu aparelho de poder - partido, polícia secreta e governo.

 

Quanto à possibilidade de uma intervenção dos países capitalistas na URSS, Kennan sublinha que não tem qualquer base ou sentido, nem a ideia de que as diferenças existentes levariam a uma cruzada contra a URSS.

 

O que sucedeu foi exatamente o contrário. A URSS viu-se obrigada a lutar, lado a lado, com as potências capitalistas, com o objetivo comum de derrotar os nazis.

 

O povo russo temeu sempre o contato direto dos países ocidentais com os quais nunca estabeleceu relações que lhe permitisse conhecê-los melhor.

 

Este sentimento era mais dos seus dirigentes conscientes de que o seu poder era relativamente arcaico e, por isso, frágil e artificial nos seus fundamentos psicológicos e que não resistiria a uma comparação com os sistemas políticos dos países ocidentais.

 

Por isso sempre temeram e evitaram que o povo russo, fosse exposto a um contato direto, que o levasse a aprender a verdade acerca do mundo exterior e revelasse a verdade acerca das condições em que viviam no seu mundo.

 

Procuraram assim garantir a sua segurança através de uma paciente, mas implacável luta pela total destruição dos poderes rivais, nunca através de pactuações ou compromissos.

 

Daí que tivesse abraçado o marxismo, que via os conflitos económicos da sociedade como insolúveis através de meios pacíficos.

 

Depois da revolução bolchevista, este sentimento de insegurança cresceu exacerbadamente, dele resultando uma justificação para o receio do mundo exterior e para a ditadura, sem a qual se sentiam sem se saber governar.

 

Em nome do marxismo, os russos sacrificaram todo e qualquer valor ético individual, nos seus métodos e táticas, aceitando todas as crueldades e sacrifícios impostos aos cidadãos.

 

Tudo passou a ser considerado dogma, sem qualquer respeito pela verdade objetiva, em que nem sequer acreditam, sendo os factos meros instrumentos para a realização dos seus propósitos.

 

Estas são algumas das premissas que levaram Kennan a defender que os EUA deviam conduzir uma política de firme e vigilante contenção das tendências expansionistas soviéticas, construindo uma defesa forte, suficientemente dissuasora.

 

Tão importante como isso, os EUA deveriam fortalecer as suas instituições democráticas e a capacidade económica da Europa ocidental, ajudando a sua reconstrução no pós-guerra e promovendo a sua coesão e força moral, de forma a conter a pressão soviética contra as instituições livres do mundo ocidental.

 

Truman decidiu, contudo, adotar uma política de contenção, mais musculada, baseada sobretudo na força militar e económica americana e menos focada na ação diplomática.

 

 

Acabarei a minha intervenção com uma referência a um artigo, publicado no Financial Times, de 26 de fevereiro, da autoria de um antigo colega meu, David Manning, que foi embaixador do Reino Unido em Washington, ao mesmo tempo que eu e de Jonathan Powell, que foi chefe de gabinete de Tony Blair.

 

O artigo intitulado “a new long telegram” faz uma revisitação ao longo telegrama de George Kennan, para depois os seus autores discorrerem sobre o que poderia hoje escrever Kennan, se fosse vivo, num segundo longo telegrama.

 

Salientam no artigo as muitas semelhanças que, apesar das profundas mudanças no mundo, a situação de hoje da Rússia de Putin apresenta em relação à situação da União Soviética de Estaline.

 

Tal como Kennan, elaboram um conjunto de sugestões sobre as linhas de atuação a serem tomadas pelos decisores políticos do mundo ocidental, face à guerra da Ucrânia e à ordem internacional que a ela se seguirá.

 

Assim, partindo da premissa de que Putin, tal como Estaline, só é sensível à lógica da força, defendem a necessidade de o Ocidente contrariar a agressão de Putin e de mostrar determinação quanto ao uso da força.

 

Mas, segundo os autores, devemos olhar para uma futura ordem de segurança europeia, que procure encontrar uma solução que não deixe de ter em conta o sentimento de insegurança da Rússia e o seu receio de um cerco cada vez mais apertado com a expansão da NATO.

 

Propõem, assim, que seja reavivado o processo de Helsínquia e um diálogo político ao mais alto nível, tentando construir uma nova relação entre a NATO e a Rússia, como já foi tentado.

 

Ao mesmo tempo consideram importante que se dê prioridade à negociação de novos acordos sobre controle de armamentos, nomeadamente quanto a um acordo com o objetivo de limitar as armas nucleares estratégicas.

 

Da mesma forma, propõem que seja reavivado o acordo para a redução das armas convencionais na Europa, limitando o destacamento de forças convencionais e respetivo armamento, pondo em prática um sistema de monitorização com inspeções intrusivas.

 

Todas estas negociações deverão, não só ter em conta a segurança da Rússia, mas igualmente a segurança da Ucrânia e dos países da Europa ocidental e central.  

 

Para a procura de uma paz justa e duradoura é importante distinguir Putin da Rússia.

 

Putin e o seu regime poderão ser considerados párias, mas devemos evitar demonizar toda a população da Rússia.

 

Devemos, sim, sinalizar que acreditamos no futuro da Rússia como um grande país europeu e não com um “junior partner”, como parece ser hoje o caso na relação da Rússia com a China.

 

Quanto a Putin, deveremos desfazer as suas ilusões acerca dos EUA e seus aliados.

 

Putin cometeu dois erros crassos.

 

O primeiro erro foi esperar da parte do Ocidente uma oposição fraca à incorporação da Ucrânia no reconstituído império russo.

 

Nada tínhamos feito, constatou, quando a Rússia tinha invadido a Geórgia, em 2008 ou anexado a Crimeia, em 2014.

 

Os EUA estavam ainda sob o choque da sua retirada do Afeganistão em 2021.

 

Putin pensou ainda, que as suas ameaças de usar o seu arsenal nuclear, intimidariam os países apoiantes de Kiev.

 

Neste quadro, o Ocidente precisa de manter um elevado grau de coesão, firmeza e vigor. Temos que mostrar que somos superiores à Rússia e que estamos unidos e dispostos a usar a força.

 

Neste particular os autores do artigo estão na mesma linha de George Kennan.

 

O segundo erro de Putin foi pensar que o Ocidente está em declínio e que tinha perdido a autoconfiança nas suas capacidades.

 

O brexit, o desprezo de Donald Trump pelo primado do direito, a tentativa de subversão do processo eleitoral americano, as desigualdades económicas, o sucesso dos políticos populistas, as tensões sociais e raciais, levaram Putin a pensar que a democracia tinha os dias contados.

 

Apesar da sua desastrosa campanha militar, Putin espera que mais dia menos dia, o Ocidente e a sua determinação desfaleçam, com fadiga e desalento e que ele possa clamar vitória.

 

Teremos que provar que ele está errado, não apenas para o bem da Ucrânia, mas para o nosso próprio bem.

 

O apetite de Putin cresce com o comer. Primeiro engoliu partes de Georgia, a seguir a Crimeia, depois a região de Donbass. Se ocupar a Ucrânia o que virá depois: a Moldávia, os países bálticos, a Finlândia?

 

O compromisso da NATO e a sua credibilidade serão suficientes para salvaguardar a nossa liberdade, como o fez nos últimos 76 anos?

 

O que sucederá se as opiniões públicas quebrarem de cansaço e o apoio militar e financeiro à Ucrânia esmorecer?

 

Teremos que nos preparar para uma longa luta, possivelmente com o arrastamento da guerra da Ucrânia.

 

Ao mesmo tempo teremos que contrariar os esforços de Putin para promover instabilidade, quer na Siria, nos Balcans, ou no Sahel, quer nos nossos próprios países.

 

Teremos que contar com o obstrucionismo de Moscovo nas instituições multilaterais, conjuntamente com o desafio da China, o que nos obrigará a repensar os termos do comércio global.

 

Estaremos perante um desafio fundamental à globalização, da qual as nossas economias têm dependido há décadas.

 

Teremos que decidir sobre as sanções à Rússia e persuadir as potências emergentes de que a invasão da Ucrânia não é apenas um conflito da NATO.

 

Um novo longo telegrama, dizem os autores do artigo, celebraria hoje a determinação e a coesão que os países do Ocidente têm mostrado durante os últimos 12 meses, no seu apoio à Ucrânia.

 

Mas alertar-nos-ia também, contra a complacência.

 

O teste da Ucrânia está longe do seu termo.

 

Os problemas económicos e sociais a que as nossas sociedades terão que fazer face serão enormes.

 

George Kennan estava certo quando dizia que o nosso sucesso dependeria, em grande medida, da saúde e vigor das nossas sociedades.

 

Daí a necessidade, acentuou então, de uma forte e coesiva base doméstica, acrescentando que qualquer medida para melhorar a nossa autoconfiança, disciplina moral e espírito comunitário do nosso próprio povo, será uma vitória sobre Moscovo e valerá mil notas diplomáticas e comunicados conjuntos.

 

O mesmo é verdade hoje.

 

Estamos num momento crucial.  O resultado da Ucrânia determinará se a Europa pode ter esperança num futuro livre e pacifico, fundado no respeito do Direito Internacional, ou se a Europa será de novo o “cockpit” de um conflito em que a força ditará a razão.

 

No primeiro aniversário da invasão da Ucrânia por Putin, Kennan ainda tem muito para nos ensinar.

 

Angra do Heroísmo, 14 de março de 2023

 

Pedro Catarino